ACÓRDÃO N.º 980/2025
PROCESSO N.º 1235-C/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Leonel Elísio Neri Muacandala, melhor identificado nos autos, veio ao Tribunal Constitucional interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade da Decisão proferida pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, aos 4 de Setembro de 2024, no âmbito do Processo n.º 337/2024, que julgou improcedente a Providência de Habeas Corpus por si requerida.
O Recorrente, inconformado com a douta Decisão sindicada, interpôs, tempestivamente, recurso extraordinário de inconstitucionalidade (fls. 20), regularmente admitido nos termos do artigo 676.º do Código de Processo Civil (CPC), conjugado com o n.º 1 do artigo 42.º e o n.º 1 do artigo 49.º, ambos da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC).
Admitido o recurso, observaram-se os trâmites legais, tendo sido o Recorrente notificado para apresentar as suas alegações de mérito constitucional (fls. 55 e 58), em cumprimento do disposto no artigo 690.º do CPC e do artigo 45.º da LPC. Contudo, findo o prazo fixado pelo Juiz Conselheiro Relator, o Recorrente não se manifestou. Apesar disso, foi-lhe concedido mais um prazo suplementar para o efeito (fls. 60 e 63), que decorreu sem a apresentação das alegações, mantendo-se em completo silêncio até a presente data.
O processo foi à vista do Ministério Público que, no essencial, promoveu o seguinte:
“Admitido o recurso, foi o Recorrente notificado para apresentar as suas alegações no prazo de 10 dias, o que não o fez (…).
Novamente notificado para apresentar as suas alegações no prazo adicional de 5 dias, o Recorrente não o fez (…).
Assim, não tendo o Recorrente, depois de regularmente notificado, apresentado as suas alegações, propomos que o seu recurso seja julgado deserto, nos termos dos artigos 292.º, n.º 1 e 690.º, n.º 2 do CPC, aplicáveis por força do artigo 2.º da LPC.”
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso foi interposto nos termos e com os fundamentos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), norma que estabelece o âmbito do recurso extraordinário de inconstitucionalidade, para o Tribunal Constitucional, como sendo “as sentenças dos demais tribunais que contenham fundamentos de direito e de decisões que contrariem princípios, direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República de Angola”.
Ademais, foi observado o pressuposto do prévio esgotamento da cadeia recursória conforme o estatuído no § único do artigo 49.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
O Recorrente intentou uma providência de habeas corpus, requerendo a restituição à liberdade. Porém, não viu a sua pretensão atendida, por essa razão, tem legitimidade para interpor o presente recurso, nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, ao abrigo do qual “podem interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional o Ministério Público e as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
V. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade é verificar se a Decisão proferida pelo Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda, aos 4 de Setembro de 2024, no âmbito do Processo n.º 337/2024, violou princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
V. APRECIANDO
Questão Prévia
Dos presentes autos, verifica-se que o Juiz Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Luanda indeferiu a providência de habeas corpus impetrada pelo Recorrente, por falta de fundamento, o que motivou o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade. Porém, admitido o recurso interposto junto do Tribunal Constitucional denota-se a ausência de impulso processual, desde logo, marcada pela falta de apresentação de alegações de mérito constitucional nesta Corte de Justiça.
O n.º 1 do artigo 690.º do CPC estatui que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual concluirá, de forma sucinta, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”. Ora, esta disposição impõe ao recorrente dois ónus, sendo um de apresentar a sua alegação de recurso e outro o de concluir fazendo indicação, esta resumida, dos fundamentos porque pede a alteração ou anulação da decisão recorrida. Por força desse artigo, as alegações têm de se dirigir à decisão de que se recorre, sendo pelas respectivas conclusões que é delimitado o objecto do recurso, nos termos do previsto no n.º 3 do artigo 684.º do CPC.
A disciplina jurídico-legal da tramitação do processo constitucional segue as normas próprias da lei processual, sendo subsidiariamente aplicável o Código de Processo Civil, ex vi, do artigo 2.º da LPC. Neste domínio, as alegações constituem a peça jurídica elementar para a apreciação da causa sub judice pelo julgador, em face da delimitação do objecto, das razões ou motivações de facto e de direito expostas pelo Recorrente sem as quais se estará em presença de um recurso obsoleto e inócuo, por carecer dos pressupostos necessários à realização da justiça, à descoberta da verdade material e à garantia da segurança jurídica, bem como à própria análise do mérito jurídico-constitucional.
Essa exigência encontra paralelo no processo civil, em que a falta de apresentação das alegações recursais acarreta a deserção do recurso, nos termos do artigo 292.º do Código de Processo Civil.
Entretanto, no recurso extraordinário de inconstitucionalidade perante o Tribunal Constitucional, a ausência de alegações não implica, por si só, a deserção do recurso. Quando for possível compreender a intenção do Recorrente, os elementos essenciais do requerimento de interposição podem ser aproveitados, em respeito aos princípios da adequação funcional e da autonomia do processo constitucional, conforme jurisprudência fixada no Acórdão n.º 364/2015 (disponível em www.tribunalconstitucional.ao).
Outrossim, apesar do posicionamento defendido por este Tribunal Constitucional no Acórdão supra mencionado, saliente-se que só naquelas circunstâncias e não noutras, o Tribunal pode fazer o aproveitamento, sob pena deste estar a substituir-se ao Recorrente no cumprimento do ónus de promoção do andamento do processo, em afronta ao disposto no n.º 1 do artigo 264.º do CPC e, ao fazê-lo, comprometer os princípios da imparcialidade e da necessidade do pedido. Essa exegese jurídica encontra respaldo no Acórdão n.º 927/2024, de 14 de Novembro (www.tribunalconstitucional.ao), que reafirma a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional.
Todavia, dos autos consta um requerimento de interposição de recurso extraordinário de inconstitucionalidade (fls. 20), datado de 14 de Outubro de 2024, dirigido ao Juiz Desembargador Presidente, acompanhado das respectivas alegações apresentadas no Tribunal recorrido. Nessas alegações, contudo, o Recorrente limita-se a mencionar alguns princípios e artigos da Constituição, sem demonstrar, de forma concreta, de que modo a Decisão recorrida violou princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
Ora, diante dessa omissão manifesta, esta Corte Constitucional notificou o Recorrente por duas vezes para apresentação das suas alegações fundamentadas no mérito constitucional, sob pena de comprometer a apreciação do presente recurso. Não obstante, o Recorrente não alegou, revelando, assim, falta de interesse no prosseguimento do recurso.
Outrossim, após a vista do Ministério Público e depois de corridos os vistos simultâneos dos Juízes Conselheiros, o Tribunal Constitucional recebeu informação do Representante do Ministério Publico (fls. 86), dando nota que o Recorrente já se encontra em liberdade, em virtude de ter sido expiada a pena a que foi condenado.
Assim, esta Corte Constitucional considera que a restituição do arguido à liberdade faz esgotar o objecto e fundamento do pedido do recurso extraordinário de inconstitucionalidade interposto pelo Recorrente e, consequentemente, não mais pode pronunciar-se sobre a Decisão recorrida, por inutilidade superveniente da lide.
Sobre esta matéria, Lebre de Freitas assevera que “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide ocorre quando por um facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida” (Código de Processo Civil, Anotado, Volume I, 3.ª ed., p. 546).
Com efeito, a solução adoptada no mesmo sentido jaz em diversas decisões que integram a jurisprudência desta Corte Constitucional, mormente nos Acórdãos 340/2015, 752/2022, 830/2023 e 873/2024 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao), nos quais se reafirma o entendimento de que a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide ocorre quando, por facto superveniente, a pretensão do autor se torna insustentável nos termos em que foi inicialmente formulada.
Pelo exposto, o Tribunal Constitucional conclui pela declaração de inutilidade superveniente da lide, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 287.º do Código do Processo Civil, aplicado subsidiariamente ao processo constitucional ex vi do artigo 2.º da LPC.
DECIDINDO
Nestes termos,
Tudo visto e ponderado, acordam em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DECLARAR EXTINTA A INSTÂNCIA, POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE, NOS TERMOS DA ALÍNEA E) DO ARTIGO 287.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, 1 de Abril de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Josefa Antónia dos Santos Neto
Lucas Manuel João Quilundo (Relator)
Maria da Conceição de Almeida Sango