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ACÓRDÃO N.º 992/2025
PROCESSO N.º 1242-B/2024
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I.  RELATÓRIO
Raimundo Joaquim Brito, com os demais sinais de identificação nos autos, veio, por intermédio do seu mandatário judicial, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08 de 17 de Junho, Lei  do Processo Constitucional (LPC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/10 de 3 de Dezembro, interpor o presente recurso, contra o Despacho proferido pelo Juiz Relator da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal, Aduaneiro, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 05/2022 - I, alegando em síntese o seguinte:
1. O Recorrente foi quadro do Ministério da Educação, tendo sido provido à categoria de Professor do Ensino Secundário do Primeiro Ciclo, do primeiro escalão. Em 2009 foi nomeado, por Despacho n.º 204/2009, do Governador Provincial do Moxico, para, em comissão ordinária de serviço, exercer o cargo de Chefe de Secção da Direcção Municipal da Educação dos Bundas, tendo sido exonerado do mesmo em 2011.
2. Durante o exercício do cargo nunca lhe foram pagos os salários correspondentes, bem como os respectivos suplementos a que tinha direito até a data da sua reforma, ocorrida em 2014. Para ver satisfeitos os seus créditos laborais, intentou junto da Sala do Cível e Administrativo do então Tribunal Provincial do Moxico, uma acção de Contencioso Administrativo, no âmbito do Processo n.º 18 – C/2020, que foi julgada improcedente por preterição de formalidades legais, mormente a obediência do precedente obrigatório, nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 2/94, de 14 de Janeiro, sobre a Impugnação dos Actos Administrativos.
3. Inconformado com a Decisão, interpôs recurso de apelação junto da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal, Aduaneiro, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, no âmbito do Processo n.º 05/2022 – I, que foi julgado deserto por falta de pagamento de preparos, de acordo com o estatuído no artigo 135.º do Código das Custas Judiciais.
4. Sustenta o Recorrente que, apesar de ter pago as custas dos preparos inicial e final do incidente de recurso, conforme fls. 92 e 93 dos autos, o Despacho recorrido violou os princípios constitucionais do duplo grau de jurisdição, da tutela jurisdicional efectiva (artigo 29.º da CRA) e do direito ao julgamento justo e conforme (artigo 72.º da CRA).
5. Deste modo, o Despacho recorrido denegou a justiça ao Recorrente, que apesar de ter pago os preparos e as custas finais do incidente do recurso, ainda assim, o mesmo foi julgado deserto.
6. Sustenta que ainda que não tivesse pago, não daria direito a tal deserção, na medida em que “o atraso ou não pagamento de custas judicias não deve, necessariamente, sacrificar nem o direito fundamental ao recurso, nem o princípio da tutela jurisdicional efectiva”, conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional, vertida nos Acórdãos n.ºs 393/2016, 826/2023, 923/2024.
7. Assim sendo, o Acórdão recorrido violou também os princípios da separação de poderes (n.º 2 do artigo 2.º da CRA), da legalidade (n.º 2 do artigo 6.º da CRA), e da certeza e segurança jurídica (artigo 29.º da CRA), ao denegar a justiça ao Recorrente.
O Recorrente termina requerendo que se dê provimento ao presente REI, declarando inconstitucional o Despacho recorrido, por violação dos princípios alegados.
O Processo foi à vista do Ministério Público que se pronunciou no sentido de ser dado provimento ao recurso extraordinário de inconstitucionalidade, por considerar que o Despacho recorrido violou os princípios e preceitos constitucionais invocados pelo Recorrente.
Colhidos os vistos legais cumpre, agora, apreciar para decidir.
 
II.  COMPETÊNCIA 
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade nos termos da alínea a) e do § único do artigo 49.º e do artigo 53.º, ambos da Lei n.º 3/08, 17 de Junho Lei do Processo Constitucional (LPC), bem como disposições conjugadas da alínea m) do artigo 16.º e do n.º 4 do artigo 21.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (LOTC), tendo sido esgotada a cadeia de recursos ordinários.
II.  LEGITIMIDADE 
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, têm legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional "as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário".
O Recorrente tem legitimidade para interpor o presente Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade, por ser parte vencida no Processo n.º 05/2022 - I, que correu trâmites junto da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal, Aduaneiro, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda. 
III.  OBJECTO
O presente recurso tem como objecto o Despacho do Juiz Desembargador Relator, proferido no âmbito do Processo n.º 05/2022 - I, que correu trâmites junto da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal, Aduaneiro, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, cabendo agora verificar se tal decisão violou ou não as normas ou princípios constitucionalmente alegados pelo Recorrente. 
V.  APRECIANDO 
 
O presente recurso resulta do facto de o Recorrente estar inconformado com o Despacho do Juiz Desembargador Relator, proferido no âmbito do Processo n.º 05/2022 - I, que correu trâmites junto da 3.ª Secção da Câmara do Cível, Administrativo, Fiscal, Aduaneiro, Família e Justiça Juvenil do Tribunal da Relação de Luanda, que julgou deserto o recurso interposto pelo Recorrente, por falta de pagamento de preparos.
Nesta medida, assevera o Recorrente que o Acórdão recorrido violou os princípios constitucionais do duplo grau de jurisdição, da tutela jurisdicional efectiva, do direito ao julgamento justo e conforme, da separação de poderes, da legalidade e da certeza e segurança jurídica, previstos nos artigos 29.º, artigo 72.º, no n.º 2 do artigo 2.º e n.º 2 do artigo 6.º, todos da Constituição da República da Angola.
No essencial, apesar do Recorrente ter alegado a violação de vários princípios, a apreciação deste Tribunal circunscrever-se-á na violação dos princípios constitucionais do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, bem como ao direito ao recurso, previstos no artigo 29.º e no n.º 6 do artigo 67.º, ambos da CRA, pelo facto de os mesmos estarem intimamente interligados, de modo que, a violação de um acarreta, necessariamente, a dos demais, ou seja, no plano objectivo, funcionam como verdadeiros “vasos comunicantes”.  
À luz do princípio constitucional do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, vertido no artigo 29.º, do qual decorre o direito ao recurso, as partes gozam da prerrogativa de verem as suas pretensões reapreciadas por um tribunal superior. 
Destarte, ainda que o Despacho recorrido tenha por base a norma jurídica do artigo 287.º do CPC, conjugado com o artigo 135.º do Código das Custas Judiciais, a apreciação do mérito da causa não poderia, em circunstância alguma, ter sido posta em crise, em detrimento de normas constitucionais.
Com efeito, nos Acórdãos n.ºs 375/15, 393/16, 633/20, 726/20 e 826/23 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao), sustenta-se que o atraso ou a falta de pagamento de custas não deve, necessariamente, sacrificar o direito fundamental ao recurso, nem violar o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva. Além disso, a questão central, ou seja, o não conhecimento do objecto do recurso, prende-se, essencialmente, em não ser apreciado, pelo Tribunal ad quem, o pedido de reconhecimento do direito de “créditos laborais”, no pedido formulado pelo Recorrente.
Ainda sobre esta matéria, ficou consignado no Acórdão 633/2020 de 4 de Agosto, deste Augusto Tribunal o seguinte: “efectivamente urge salientar que, em bom rigor, as decisões judiciais não podem fazer tábua rasa dos princípios hermenêuticos que comandam a relação dialética do Direito e da Justiça como um todo estruturante, concretizador da ordem jurídica.
Por outra parte, na classificação dicotómica clássica – Direito instrumental e Direito material – refere-se que a sua conexão deve se pautar e harmonizar com a realização da justiça material, respeitando os princípios da plena integração, da hierarquia das fontes e da adequação funcional que merecem tutela constitucional.
Entretanto, a orientação seguida pelo Tribunal ad quem, relativamente a Decisão recorrida, conferiu prevalência a pressupostos de natureza formal, solução que, no caso sub judice, não se compagina com o espírito e a letra da Constituição, enquanto guardiã dos direitos e garantias constitucionais.”
Face ao defluido, constata-se que o Despacho recorrido ofendeu o princípio constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva e o direito ao recurso, previstos no artigo 29.º da Constituição da República de Angola. 
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: 
a) DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, EM VIRTUDE DO DESPACHO RECORRIDO TER VIOLADO O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DO ACESSO AO DIREITO E TUTELA JURISDICIONAL EFECTIVA E O DIREITO AO RECURSO, PREVISTOS NO ARTIGO 29.º E NO N.º 6 DO ARTIGO 67.º, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE ANGOLA;
b) BAIXAR OS AUTOS, NOS TERMOS DO N.º 2 DO ARTIGO 47.º DA LPC, AO TRIBUNAL RECORRIDO, PARA EFEITOS DE ADMISSÃO DO RECURSO E OBSERVÂNCIA DOS ULTERIORES TERMOS DO PROCESSO. 
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 26 de Maio de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) 
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente) 
Amélia Augusto Varela 
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo 
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi (Relator)