ACÓRDÃO N.º 995/2025
PROCESSO N.º 1286-B/2025
Recurso Extraordinário de Inconstitucionalidade (Habeas Corpus)
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
Nuno Ricardo Machado Maio, Recorrente, com os demais sinais de identificação nos autos, veio, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade, do Despacho que indeferiu a providência de habeas corpus, proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, no âmbito do Processo n.º 01/2025.
Para o efeito, o Recorrente alega, em síntese, o seguinte:
1. O Recorrente foi detido aos 26 de Abril de 2022, na sequência foi acusado e pronunciado pelo crime de homicídio qualificado.
2. Foi julgado e condenado, em primeira instância, na pena de prisão de 25 anos, aos 16 de Maio de 2023.
3. Inconformado com a referida decisão, interpôs recurso com efeito suspensivo.
4. Está em excesso de prisão preventiva por se encontrar preso há mais de três (3) anos, na pendência do recurso impetrou providência de habeas corpus.
5. Por Despacho proferido pelo Juiz Conselheiro Presidente, a providência de habeas corpus foi indeferida, porém, em violação aos princípios constitucionais da legalidade e da igualdade, nos termos dos artigos 6.º e 23.º da Constituição da República de Angola (CRA).
6. Aditou que o Despacho recorrido é igualmente inconstitucional por violação do direito a tutela jurisdicional efectiva e ao julgamento justo e conforme, nos termos dos artigos 29.º e 72.º, respectivamente.
7. A Decisão ad quem violou o princípio constitucional da imparcialidade e isenção do Tribunal, consagrados nos artigos 175.º da CRA e 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos.
8. A Decisão recorrida está ferida de nulidade por ter desconsiderado completamente a existência e eficácia de habeas corpus por não observar os pressupostos constitucionalmente estabelecidos para apreciação desta providência.
9. A Decisão recorrida viola frontalmente preceitos constitucionais, afectando direitos e garantias legalmente protegidos. A manutenção de tal Decisão implica um enfraquecimento do Estado de Direito Democrático
O Recorrente conclui as suas alegações pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja declarado inconstitucional o Despacho recorrido, por considerar ofensivo aos princípios e direitos constitucionais.
Ao abrigo das disposições combinadas dos artigos 2.º da Lei do Processo Constitucional (LPC) e do n.º 3 do artigo 707.º do Código de Processo Civil, foram dispensadas à vista do Ministério Público e os vistos simultâneos.
II. COMPETÊNCIA
O presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade foi interposto, nos termos da alínea a) do artigo 49.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional (LPC), pelo que, o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar e decidir o presente recurso.
III. LEGITIMIDADE
Nos termos da alínea a) do artigo 50.º da LPC, dispõem de legitimidade para interpor recurso extraordinário de inconstitucionalidade para o Tribunal Constitucional “as pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a sentença foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso ordinário”.
O Recorrente é parte do Processo n.º 01/2025, que tramitou no Tribunal Supremo, não se conformando com a decisão proferida, tem legitimidade para interpor o presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade.
IV. OBJECTO
O objecto do presente recurso extraordinário de inconstitucionalidade incide em apreciar se o Despacho recorrido, que determinou a improcedência do habeas corpus e a manutenção da prisão preventiva, ofendeu princípios, direitos, liberdades e garantias constitucionais.
V. APRECIANDO
O Recorrente vem perante esta Corte pôr em crise o Despacho retro citado, prolactado pelo Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que julgou improcedente a providência de habeas corpus por si impetrada.
Sustenta o Recorrente que a Decisão recorrida é violadora de princípios e garantias constitucionais, conquanto, encontra-se preso preventivamente há mais de 3 anos sem sentença judicial transitada em julgado, estando, portanto, em excesso de prisão preventiva.
Dos autos extrai-se, a fl. 14, a informação de que o arguido, aqui Recorrente, foi detido aos 26 de Abril de 2022, a prisão foi formalizada pelo Digno Magistrado do Ministério Público, aos 02 de Maio de 2022, foi julgado e condenado em primeira instância na pena de 25 anos de prisão maior, aos 16 de Maio de 2023, inconformado, interpôs recurso com efeito suspensivo, que está pendente na Câmara Criminal do Tribunal Supremo.
Na pendência do recurso, o Recorrente impetrou providência de habeas corpus no Tribunal ad quem que, por seu turno, a julgou improcedente e manteve a prisão do arguido, estribada na fundamentação que a seguir se resume:
“(…) além de nos pronunciarmos sobre a alegada ilegalidade da prisão preventiva por esgotamento dos prazos de duração máxima, olharemos também, para a ordem e tranquilidade públicas enquanto princípio constitucional fundamental, que serve de critério para aplicação da medida de prisão preventiva.”
Relativamente à alegação de excesso de prisão preventiva o Tribunal recorrido sublinha que “os prazos de prisão preventiva estão regulados no artigo 283.º do CPPA, e para o que agora interessa, diremos que a prisão preventiva do arguido extingue-se na ausência de condenação com trânsito em julgado no prazo de 18 meses ou 20 meses havendo prorrogação, conforme o artigo 283.º, n.º 1, alínea d) e o n.º 2 do CPPA.
Nesta senda, atento ao tipo de crime que determinou a prisão preventiva do arguido “crime de homicídio qualificado”, por sinal confirmada por sentença não transitada em julgado do tribunal de primeira instância, não obstante a fundada alegação de esgotamento dos prazos de privação preventiva, a manutenção da prisão preventiva é justificada no quadro da garantia da ordem pública enquanto um fundamento cautelar ao serviço do processo de justiça”.
Concluiu justificando que “o direito individual de liberdade deve ser exercido de maneira adequada e em consonância com toda colectividade, sob pena de, estando em conflito prevalecer este último”.
No corpus da fundamentação da Decisão ad quem ficou assinalado o reconhecimento de que, de facto, o aqui Recorrente encontra-se em excesso de prisão preventiva, não obstante o facto de, o Tribunal que atento ao tipo de crime que determinou a prisão preventiva do arguido “crime de homicídio qualificado”, por sinal confirmada por sentença não transitada em julgado do Tribunal de primeira instância, não obstante a fundada alegação de esgotamento dos prazos de privação preventiva, a manutenção da prisão preventiva é justificada no quadro da garantia da ordem pública enquanto um fundamento cautelar ao serviço do processo de justiça.
Nos termos em que fica exposta, a Decisão ad quem suscita, entre outros, o problema jurídico fundamental, é saber se à vista da Constituição e da lei, havendo excesso da prisão preventiva, é legítimo invocar razões de segurança e ordem públicas para rejeição da providência de habeas corpus.
A prisão preventiva consubstancia-se numa medida de coacção pessoal de carácter cautelar e instrumental que cumpre, essencialmente, dois escopos, salvaguardar a integridade da instrução e a eventual aplicação da pena.
Todavia, a prisão preventiva está subordinada aos princípios da legalidade, necessidade, adequação, proporcionalidade, subsidiariedade e precariedade.
Com efeito, ao abrigo da Constituição a liberdade física, isto é, a de ir, vir e permanecer é um direito compenetrado no núcleo essencial dos direitos fundamentais, cuja restrição somente pode ocorrer nos casos e condições determinadas por lei, conforme o disposto nos artigos 57.º e 64.º da CRA.
Nesta conformidade, no quadro dos poderes democráticos, é o poder legislativo que detém a competência absoluta constitucional para legislar e definir as condições em que os direitos fundamentais, máxime, a liberdade física pode sofrer limitações ou restrições.
No caso vertente, tratando-se de arguido, o regime de limitação da liberdade, figura, exclusivamente, na Lei n.º 39/20, de 11 de Novembro, que aprova o Código de Processo Penal Angolano (CPPA), em cujo artigo 261.º está tabulado o princípio da legalidade das medidas de coacção.
No referido dispositivo está evidenciado que as medidas de coacção são as enumeradas exclusivamente no mencionado Código e as mesmas somente podem ser aplicadas em razão de exigências processuais de natureza cautelar.
Acresce que, as medidas de coacção estão subordinadas aos princípios da precariedade e da limitação no tempo, sendo, portanto, inadmissíveis medidas de coacção de duração ilimitada.
Com efeito, o Código do Processo Penal Angolano estabelece limites quanto à duração da prisão preventiva, os quais estão consignados no artigo 283.º, sob a epígrafe “Prazos Máximos da Prisão Preventiva:
1. A prisão preventiva cessa quando, desde o seu início decorrerem:
a) 4 meses sem acusação do arguido;
b) 6 meses sem o arguido ser pronunciado;
c) 12 meses, até a condenação em primeira instância;
d) 18 meses, sem haver condenação com trânsito em julgado.
2. Os prazos estabelecidos no número anterior são alargados, respectivamente, para 6, 8, 14 e 20 meses, quando se tratar de crime punível com pena de prisão superior, no seu limite máximo, a 5 anos e o processo revestir de especial complexidade (…)”.
Assim, ainda que seja prorrogada a prisão preventiva, o limite máximo não pode ultrapassar vinte (20) meses.
No caso vertente, o Recorrente encontra-se privado preventivamente da liberdade desde 26 de Abril de 2022, portanto, há mais de 36 meses sob prisão preventiva, sem decisão judicial transitada em julgado, razão por que impetrou pedido de habeas corpus que lhe foi negado pelo Tribunal ad quem.
A condição de excesso de prisão preventiva em que está votado o Recorrente é ostensiva e de per si causa bastante para a respectiva extinção, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 268.º CPPA.
Não obstante, o Despacho recorrido que indeferiu o habeas corpus e manteve a prisão estribando-se na alínea c) do n.º 1 do artigo 263.º do CPPA, que estabelece alguns dos pressupostos de aplicação da prisão preventiva, este Tribunal entende que a mesma tem natureza cautelar e instrumental, pelo que o perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação da ordem pública, embora figurem como pressupostos da prisão preventiva, pode configurar fundamento para sua aplicação, porém não para sua manutenção fora do prazo.
Ou seja, qualquer que seja a razão subjacente à aplicação da medida de prisão preventiva, há que se respeitar invariavelmente os limites da sua duração.
Importa referir, que na apreciação do habeas corpus, não está em causa a análise dos fundamentos que orientam o juízo para aplicação da prisão preventiva, nem tão pouco dos factos e do direito aplicável para ponderação da pena a aplicar.
Admitir hipótese contrária seria agir em manifesta ofensa ao direito à presunção de inocência de que goza o arguido antes de sentença transitada em julgado, conforme o disposto no n.º 2 do artigo 67.º da CRA.
Outrossim, seria violar a proibição constitucional de penas e medidas de segurança de duração ilimitada ou indefinida, consignada no artigo 66.º da CRA, aplicável à prisão preventiva ad maius.
A necessidade de salvaguarda da ordem e segurança públicas enquanto justificação para manter à prisão preventiva do aqui Recorrente é constitucional e legalmente conflitante e inconsistente, conquanto evidencia uma justiça sumária, uma pena antecipada encapotada de prisão preventiva.
A prisão preventiva tem carácter cautelar e instrumental, não tem vocação natural de garantia ou restauração da ordem e tranquilidade públicas, porquanto, esta é uma das finalidades ínsitas na pena – a prevenção geral.
Ademais, o Tribunal ad quem não tem prazo para decidir o recurso interposto, manter a prisão do arguido, cujo prazo de prisão preventiva encontra-se esgotado, até decisão transitada em julgado, seria relegar o arguido, aqui Recorrente, a uma condição de prisão sem limite ou duração indefinida, em colisão frontal com os princípios e garantias constitucionais do arguido no processo, designadamente, da legalidade, liberdade, presunção de inocência e da proibição de prisão indeterminada, artigos 6.º, 57.º, 64.º, n.º 2 do 67.º e o 66.º da CRA, respectivamente.
A prisão preventiva não deve ser convolada em instrumento de antecipação de pena, sob pena de fraude e vulneração ao princípio constitucional da presunção de inocência, que é reconhecida e deve ser garantida ao arguido até que exista decisão condenatória transitada em julgado.
Em sentido simétrico, Figueiredo Dias assevera que “a manutenção da prisão preventiva para lá dos rigorosos prazos fixados na lei, torna-se incompatível com o direito à liberdade e à presunção de inocência, desvirtua a sua função cautelar, não punitiva e coloca, igualmente, em causa a concretização dos fins a que se destina o processo penal, que pressupõe a descoberta da verdade material de modo processualmente válido e admissível e , portanto, com integral respeito dos direitos das pessoas que no processo vêm envolvidas” (Direito Processual Penal 1.ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, 2004, p. 461).
A prisão preventiva prossegue um escopo distinto da pena, pois, visa garantir a integridade da instrução, a administração da justiça e impedir a continuação da actividade criminosa, contudo, é imperioso e irrevogável o respeito dos limites da sua duração.
No caso vertente, a fundamentação carreada na decisão recorrida para manutenção da prisão preventiva do Recorrente traduz ostensivamente um juízo de presunção de culpa e antecipação de pena. Posto que, a prisão preventiva, já em expressivo excesso, foi mantida para que, pretensamente, a sociedade não se sinta perturbada, amedrontada, insegura, desprotegida em virtude do crime de homicídio qualificado de que foi condenado, em primeira instância, sem trânsito em julgado.
Entende esta Corte que os fundamentos aportados na Decisão recorrida para manter a prisão preventiva, bem como a decisão da sua manutenção lesam o esquema da Constituição processual penal estruturado e inserido num Estado Democrático e de Direito.
Aliás, apenas neste sentido é compreensível o estabelecido no n.º 1 do artigo 292.º do CPPA que determina que o juízo de indeferimento do habeas corpus deve cingir-se aos requisitos taxativamente previstos, nomeadamente, no n.º 4 do artigo 290.º do citado diploma, sendo a falta de mandado competente; excesso do prazo de detenção sem validação de magistrado competente; privação da liberdade além dos prazos legais ou fixados por decisão judicial; privação da liberdade em locais inadequados; privação da liberdade por ordem de entidade incompetente ou com violação dos pressupostos e das condições para aplicação da prisão preventiva.
Admitir que os tribunais introduzam motu propriu ponderações da liberdade dos arguidos à margem dos termos e condições definidas na Constituição e na lei, é instituir perturbação intolerável à expectativa natural dos cidadãos em relação à previsibilidade legal da actuação do poder judicial.
O excesso de prisão preventiva, quando parametrizada com os princípios constitucionais da presunção de inocência e da proibição de penas ou medidas de segurança de duração ilimitada impõe aos órgãos judiciais uma única decisão, a de restituição imediata da liberdade do arguido.
De resto, é vasta a jurisprudência na qual esta Corte tem reiterado firmemente o entendimento de que a manutenção da prisão preventiva para lá dos prazos estabelecidos na lei é incompatível com o direito à liberdade e à presunção de inocência, vide, nomeadamente, os Acórdãos n.ºs 445/2017; 620/2022; 887/2024; 950/ 2024; 955/2025; 970/2025 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.ao).
Nesta conformidade, esta Corte Constitucional considera que a Decisão do Tribunal ad quem ofende os princípios da legalidade, da liberdade física, da proibição de penas ou medidas de segurança de duração ilimitada, e da presunção de inocência ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, 57.º e 64.º, 66.º e n.º 2 do 67.º da CRA, respectivamente.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em: DAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, ORDENAR A IMEDIATA RESTITUIÇÃO DO RECORRENTE À LIBERDADE, SEM PREJUÍZO DA APLICAÇÃO DE OUTRAS MEDIDAS DE COACÇÃO PESSOAL.
Sem custas, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 3 de Junho de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela (Relatora)
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi