ACÓRDÃO N.º 997/2025
PROCESSO N.º 1258-B/2025
Recurso para o Plenário
Em nome do Povo, acordam, em Conferência, no Plenário do Tribunal Constitucional:
I. RELATÓRIO
UTTER RIGHT INTERNATIONAL LIMITED e PLASMART INTERNATIONAL LIMITED, devidamente identificadas nos autos, vieram, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 5.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), interpor recurso para o Plenário do Despacho que indeferiu a reclamação sobre a rejeição do recurso ordinário de inconstitucionalidade, proferido pela Juíza Conselheira Presidente deste Tribunal, no âmbito do Processo n.º 1199-C/2024.
Com efeito, para lograr a sua pretensão as Recorrentes alegam, em síntese, o seguinte:
1. Notificadas do Despacho de pronúncia exarado pelo Juiz de Garantias, no âmbito do Processo n.º 04/23 que corre termos na Câmara Criminal do Tribunal Supremo, interpuseram recurso, ao abrigo do Código de Processo Penal de 1929.
2. Tal recurso foi indeferido e inconformadas, apresentaram reclamação ao Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que manteve a decisão.
3. Uma vez mais inconformadas, interpuseram naquele Tribunal, recurso ordinário de inconstitucionalidade, o qual foi também indeferido.
4. Diante disso, apresentaram reclamação à Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional que decretou a extinção da instância, porque o aludido Processo encontra-se em fase de julgamento e a referida Decisão não admite recurso ordinário de inconstitucionalidade, por não se tratar de decisão final.
5. À luz da lei antiga, as Recorrentes tinham direito a recurso e a lei nova só se aplica retroactivamente se for favorável ao arguido, caso contrário, mantém-se o regime regra.
6. Uma decisão judicial que impede o exercício tempestivo do direito fundamental ao recurso, direito este garantido pela Constituição, não pode ser enquadrada como interlocutória.
7. O Despacho da Juíza Presidente do Tribunal Constitucional foi muito genérico, considerando que as decisões judiciais devem ser fundamentadas. Dever-se-ia, no aludido Despacho, elencar qual é a referida impossibilidade da lide. Não há no caso inutilidade superveniente da lide, sendo que o julgamento nem sequer começou.
8. Houve uma interpretação errónea da alínea e) do artigo 287.º do CPC. A situação em apreço não configura impossibilidade da lide, porquanto não se pode considerar extinta uma instância que sequer se iniciou.
9. O Despacho da Juíza Conselheira Presidente é inconstitucional por violação do preceituado nos artigos 29.º, 67.º e 72.º da Constituição da República de Angola (CRA), do artigo 7.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), do artigo 14.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos (CADHP).
10. O Despacho da Juíza Presidente do Tribunal Constitucional é inconstitucional, pois é pouco fundamentado, violando assim o preceituado no artigo 2.º da CRA e na alínea c) do artigo 265.º do CPPA.
11. O dever de fundamentação implica a especificação suficiente dos fundamentos de facto e fundamentos de direito nas decisões. Assume uma importância fulcral no ordenamento jurídico angolano, na medida em que constitui uma das traves-mestra para a edificação de um sistema judicial balizado nas regras da democracia, transparência, legalidade, duplo grau de jurisdição, controlo dos poderes públicos e pacificação social.
Terminam pedindo que seja revogado o Despacho da Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional por falta de fundamentação e equívoco jurídico-constitucional e seja admitido o recurso ordinário de inconstitucionalidade, para que seja julgado e expurgado a interpretação que viola e desaplica normas constitucionais e fere a harmonia sistémica do processo penal.
O Processo foi à vista do Ministério Público.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.
II. COMPETÊNCIA
O Tribunal Constitucional é competente para conhecer e decidir o presente recurso, nos termos do n.º 3 do artigo 5.º da LPC.
III. LEGITIMIDADE
As Recorrentes têm legitimidade para interpor o presente recurso para o Plenário, do Despacho de indeferimento da Reclamação sobre a não admissão de recurso ordinário de inconstitucionalidade, proferido pela Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, conforme estabelece o n.º 3 do artigo 5.º da LPC.
IV. OBJECTO
O presente recurso incide sobre o Despacho de indeferimento da Reclamação sobre a não admissão de recurso ordinário de inconstitucionalidade, proferido pela Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, a fls. 22 e 22v. dos autos do Processo n.º 1199-C/2024.
V. APRECIANDO
No caso vertente, conforme resulta do relato precedente, as Recorrentes, notificadas do Despacho de Pronúncia exarado pelo Juiz de Garantias no âmbito do Processo n.º 04/23, que corre termos na Câmara Criminal do Tribunal Supremo, interpuseram recurso, o qual foi indeferido.
Inconformadas, apresentaram reclamação ao Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, que manteve o indeferimento, com fundamento na irrecorribilidade dos Despachos de Pronúncia, nos termos do artigo 354.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA). Dessa decisão interpuseram recurso ordinário de inconstitucionalidade, o qual foi rejeitado pelo Tribunal Supremo com base no disposto no n.º 3 do artigo 36.º da LPC, que estabelece a admissibilidade deste recurso apenas contra decisões finais que ponham termo ao processo.
Subsequentemente, apresentaram reclamação ao Tribunal Constitucional, onde a Juíza Conselheira Presidente admitiu a mesma, porém, após ter ordenado a subida dos autos e ter-lhe sido informado que este se encontrava em fase de julgamento, decretou a extinção da instância, justificando tal decisão com a inutilidade superveniente da lide, decorrente da pendência do julgamento no Tribunal Supremo, e com o facto de a decisão impugnada não configurar uma decisão final apta a ser objecto de recurso ordinário de inconstitucionalidade.
Com efeito, a Juíza Conselheira Presidente extinguiu a instância com base em dois fundamentos principais: a natureza interlocutória do Despacho de Pronúncia, que o tornaria insusceptível de recurso ordinário de inconstitucionalidade, e a pendência do julgamento no Tribunal Supremo, que implicaria a inutilidade superveniente da lide.
Segue a transcrição do Despacho da Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, para melhor compreensão do seu teor:
"Verifico, segundo ofício do Tribunal Supremo, a fls. 21, que o Processo se encontra em fase de julgamento, tendo já data agendada. Por outro lado, torna-se notório que o recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto não tem como objecto uma decisão final, conforme manda o n.º 3 do art. 36.º da LPC.
Assim sendo, declaro extinta a instância por impossibilidade da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287.º do CPC. Notifique-se”.
Inconformadas com tal decisão, interpuseram o presente recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, centrando os argumentos nos seguintes pontos: i) inexistência de impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide; ii) admissibilidade do recurso, porquanto a decisão que obsta ao exercício do direito ao recurso não pode ser qualificada como interlocutória; e iii) inconstitucionalidade do despacho da Juíza Conselheira Presidente, por insuficiência de fundamentação.
Assistirá razão às Recorrentes?
Veja-se.
A resposta a esta questão reclama, antes de mais, a identificação precisa do objecto do recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto pelas Recorrentes. Cumpre apurar se este incide sobre o despacho de pronúncia em si ou sobre o Despacho do Presidente do Tribunal Supremo que, em última instância, indeferiu a reclamação contra a rejeição do recurso interposto contra aquele despacho, com fundamento na norma que consagra a sua irrecorribilidade.
Tal distinção é fundamental, pois desloca o enfoque da análise da natureza interlocutória do despacho de pronúncia para o carácter definitivo da decisão que rejeitou a sua impugnação, baseada na irrecorribilidade prevista no artigo 354.º do CPPA.
Compulsados os autos, verifica-se que o recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto junto do Tribunal Supremo não visava directamente o Despacho de pronúncia, mas o Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo que indeferiu a reclamação contra a rejeição do recurso interposto contra aquele Despacho. O recurso tinha por objecto a decisão de indeferimento, com vista à sindicância da norma que estabelece a irrecorribilidade dos despachos de pronúncia, prevista no artigo 354.º do CPPA.
Assim, o Despacho recorrido parece incorrer num equívoco ao qualificar a decisão impugnada como interlocutória e ao decretar a extinção da instância com base na inutilidade superveniente da lide.
O Despacho do Juiz Conselheiro Presidente do Tribunal Supremo, ao esgotar as vias ordinárias no âmbito do incidente recursivo, adquiriu carácter definitivo nesse contexto, qualificando-se como passível de recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 36.º da LPC. Tal definitividade encontra amparo no n.º 6 do artigo 468.º do CPPA, que estabelece que a decisão do Presidente do Tribunal de recurso, ao confirmar o indeferimento ou a retenção do recurso, assume natureza final no incidente, sem prejuízo de não vincular o tribunal em caso de deferimento da reclamação.
Apesar da génese interlocutória, esse Despacho, ao indeferir o recurso por motivos de ordem jurídico-processual, reveste-se de relevância suficiente para justificar a sua impugnação autónoma, sobretudo quando o recurso ordinário de inconstitucionalidade visa sindicar a constitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade, assegurando-se, assim, a tutela efectiva de direitos fundamentais face a decisões que, embora interlocutórias na origem, geram efeitos concludentes ou potencialmente lesivos.
Além disso, em sede de Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade, estando em causa a legitimidade constitucional de uma norma, a pendência do julgamento no Tribunal Supremo não elimina a relevância prática da decisão a proferir nesta instância, pois uma eventual declaração de inconstitucionalidade da norma impugnada poderia influir no processo principal, possibilitando a admissibilidade de recurso contra tais decisões e, potencialmente, suspendendo o julgamento em curso.
A inutilidade superveniente da lide seria aplicável, in casu, apenas se o pedido se tornasse obsoleto por factos supervenientes, como a conclusão definitiva do Processo n.º 04/23, no Tribunal Supremo ou a revogação da norma impugnada, o que não ocorre no presente caso. O processo principal permanece em curso, e a questão da irrecorribilidade mantém pertinência prática, pelo que a extinção da instância com base nesse fundamento não pode colher, subsistindo o interesse das Recorrentes sem que se configure uma perda efectiva do objecto do recurso.
Com efeito, o Despacho do Presidente do Tribunal Supremo, ao indeferir a reclamação com fundamento na irrecorribilidade prevista no artigo 354.º do CPPA, adquire tal relevância jurídico-processual que se qualifica como passível de recurso autónomo para o Tribunal Constitucional, através do recurso ordinário de inconstitucionalidade, no entanto, desde que cumpridos os demais pressupostos de admissibilidade.
A admissibilidade do presente recurso depende da verificação cumulativa de requisitos legais, entre os quais a suscitação clara e tempestiva da questão de inconstitucionalidade no decurso do processo. Conforme salienta Carlos Blanco de Morais, este requisito constitui um elemento probatório indispensável à apreciação dos pressupostos do recurso, sendo vedada a sua interposição pela parte que não tenha impugnado, de forma processualmente adequada, a validade constitucional da norma aplicada antes do trânsito em julgado da decisão (Justiça Constitucional, Tomos II, o Direito do Contencioso Constitucional, 2.ª ed., Coimbra Editora, pp. 774 e 784).
Nos termos do artigo 41.º da LPC, a admissibilidade deste recurso exige a invocação prévia e fundamentada da questão de inconstitucionalidade perante o Tribunal a quo, no presente caso, o Tribunal Supremo. Analisados os autos, constata-se que as Recorrentes não cumpriram este pressuposto essencial à admissibilidade do recurso ordinário de inconstitucionalidade interposto neste Tribunal: a indicação da peça ou diligência processual em que tenham suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma aplicável.
Não se verifica nos autos qualquer peça processual em que as Recorrentes tenham suscitado, de forma expressa e fundamentada, a inconstitucionalidade do artigo 354.º do CPPA perante o Tribunal Supremo. Sem tal impugnação específica, o Tribunal Constitucional carece de elementos para proceder à fiscalização concreta da norma, justificando-se a rejeição do recurso por incumprimento deste pressuposto formal.
Tal omissão compromete a admissão deste recurso, pois o Tribunal Constitucional não pode conhecer de inconstitucionalidade de normas que não tenham sido previamente submetidas a apreciação do Tribunal recorrido.
As Recorrentes alegam, ainda, a inconstitucionalidade do Despacho recorrido, por insuficiência de fundamentação do acto proferido pela Juíza Conselheira Presidente deste Tribunal. O dever de fundamentação, enquanto garantia fundamental, impõe que as decisões judiciais apresentem as razões de facto e de direito de forma clara e inteligível, embora o seu alcance varie conforme a natureza da decisão. O Despacho em causa, embora conciso, explicita os fundamentos da decisão – a natureza não final da decisão impugnada e a alegada inutilidade superveniente da lide –, satisfazendo o mínimo exigível para uma decisão liminar, que, por regra, não requer o mesmo grau de detalhe das sentenças de mérito.
Assim sendo, face ao exposto, não tendo as Recorrentes demonstrado a suscitação prévia e fundamentada da inconstitucionalidade do artigo 354.º do CPPA perante o Tribunal Supremo, de modo a possibilitar a sua apreciação na hierarquia judicial ordinária, o presente recurso não pode prosperar. Esta omissão, configurando o incumprimento de um pressuposto essencial à admissibilidade do recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos da alínea c) do artigo 41.º da LPC, impede a intervenção deste Tribunal.
Nestes termos,
DECIDINDO
Tudo visto e ponderado, acordam, em Plenário, os Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional, em:
a) NEGAR PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO POR AUSÊNCIA DE PRESSUPOSTO ESSENCIAL DE ADMISSIBILIDADE, NOS TERMOS DA ALÍNEA C) DO N.º 1 DO ARTIGO 41.º DA LPC;
b) MANTER A REJEIÇÃO DO RECURSO ORDINÁRIO DE INCONSTITUCIONALIDADE INTERPOSTO, MAS POR FUNDAMENTO DISTINTO DO EXPENDIDO NO DESPACHO RECORRIDO.
Custas pelas Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.
Notifique.
Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 4 de Junho de 2025.
OS JUÍZES CONSELHEIROS
Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso (Presidente) (Declarou-se Impedida)
Victória Manuel da Silva Izata (Vice-Presidente)
Amélia Augusto Varela
Carlos Alberto B. Burity da Silva
Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)
Emiliana Margareth Morais Nangacovie Quessongo
Gilberto de Faria Magalhães
João Carlos António Paulino
Lucas Manuel João Quilundo
Maria de Fátima de Lima D`A. B. da Silva
Vitorino Domingos Hossi