Santo Domingo, a capital da República Dominicana, acolhe desde o passado dia 04 de Maio, o
Congresso Mundial de Direito, um evento que reúne mais de 5 mil participantes provenientes de 84 países.
Ao dissertar no evento, a Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional, 𝗟𝗮𝘂𝗿𝗶𝗻𝗱𝗮 𝗠𝗼𝗻𝘁𝗲𝗶𝗿𝗼 𝗖𝗮𝗿𝗱𝗼𝘀𝗼, fez uma extensa abordagem sobre o 𝗽𝗮𝗽𝗲𝗹 𝗾𝘂𝗲 𝗼𝘀 𝗧𝗿𝗶𝗯𝘂𝗻𝗮𝗶𝘀 𝗖𝗼𝗻𝘀𝘁𝗶𝘁𝘂𝗰𝗶𝗼𝗻𝗮𝗶𝘀 𝘁𝗲̂𝗺, 𝗲𝗺 𝗽𝗲𝗿𝗶𝗼𝗱𝗼𝘀 𝗱𝗲 𝗽𝗲𝗿𝗶𝗴𝗼 𝗽𝗮𝗿𝗮 𝗱𝗲𝗺𝗼𝗰𝗿𝗮𝗰𝗶𝗮, 𝗻𝗮 𝗱𝗲𝗳𝗲𝘀𝗮 𝗱𝗮 𝗱𝗶𝗴𝗻𝗶𝗱𝗮𝗱𝗲 𝗱𝗮 𝗽𝗲𝘀𝘀𝗼𝗮 𝗵𝘂𝗺𝗮𝗻𝗮.
Leia na íntegra, a comunicação da Juíza Conselheira Presidente do Tribunal Constitucional da República de Angola, Laurinda Prazeres Monteiro Cardoso, que aconteceu nesta segunda-feira:
EXMA. SENHORA PRESIDENTE DA SUPREMA CORTE DA REPÚBLICA DA ESLOVÁQUIA DRA. JÁN SIKUTA,
ILUSTRES CONGRESSISTAS,
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES,
É com grande entusiasmo que participo neste 29.º Congresso Mundial de Direito, sobre o tema “Um mundo governado pela lei, e não pela força”, no qual somos todos convidados a reflectir, mormente, considerando as alarmantes situações de guerra, cada vez mais generalizadas em várias latitudes do Globo, e as sistemáticas violações de direitos fundamentais ostensivas ou veladas a que muitos povos estão submetidos hoje.
No que ao tema diz respeito, e com referência à realidade da jurisdição constitucional de Angola, o artigo 1.º da Constituição da República dispõe que “Angola é uma República soberana e independente, baseada na DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA(..). (..). Isto significa que, o princípio da dignidade é o princípio e o fim sobre o qual assenta a Constituição da República de Angola.
De uma primeira leitura, é possível perceber como a Constituição da República de Angola afirma o primado da pessoa em relação ao Estado e a centralidade dos direitos humanos, rejeitando o positivismo extremo do século XIX e adoptando, assim, o modelo da “pirâmide invertida”, que parte, em primeiro lugar, dos direitos fundamentais e só depois se alarga ao Estado.
Categoricamente, o princípio da dignidade humana assinala o primado dos direitos da pessoa em relação ao Estado, representando a base fundamental do constitucionalismo contemporâneo, cujos principais objectivos são a valorização e o desenvolvimento da pessoa, associada à limitação dos poderes do Estado.
O princípio da dignidade da pessoa humana desempenha um papel fundamental na interpretação e integração dos demais direitos fundamentais. Os direitos fundamentais e os direitos humanos estão intrinsecamente relacionados, razão pela qual a Constituição, no n.º 2 do artigo 26.º, dispõe que os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados e integrados em conformidade com a DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos), CADHP (Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos) e os tratados internacionais sobre a matéria, ratificados por Angola.
Este princípio orienta igualmente as decisões judiciais e reflete o compromisso com a justiça, a igualdade e o respeito pela humanidade. Como defende o Professor Wolfram Hofling, da Universidade de Colónia na Alemanha, o Tribunal Constitucional, enquanto intérprete supremo da Constituição, deve resistir à tentação de deturpar o conceito de dignidade humana como base para a construção de um mundo melhor, ainda que isso possa pôr em risco a aplicação efectivada Constituição.
Com o enunciado da sua inviolabilidade, o artigo 1.º da Constituição da República de Angola consagra um direito fundamental, sendo este descrito como um princípio constitucional, uma norma de legitimidade estatal, o ponto arquimediano do Estado Constitucional ou como o mais elevado valor jurídico da Constituição.
Estas variações conceptuais apenas sublinham a importância excepcional do princípio da dignidade humana, que se exprime juridicamente na sua imutabilidade, estabelecida na alínea a) do artigo 236.º da Constituição da República de Angola.
Em contraste com as dúvidas ainda manifestadas por parte da doutrina, importa sublinhar que, na realidade angolana, o princípio da dignidade da pessoa humana não representa apenas um direito objectivo, mas reveste também a natureza de um direito subjectivopúblico, tal como os demais direitos fundamentais. Esta qualidade decorre, de forma inequívoca, dos artigos 1.º, 2.º, 28.º e 56.º todos da CRA, que consagram a obrigatoriedade de todas as autoridades estatais respeitarem e protegerem a dignidade humana.
Todas as autoridades estatais têm, assim, a obrigação de respeitar a dignidade humana. Esta obrigação expressa uma das vertentes da protecção conferida por direito fundamental, isto é, a de assegurar protecçãocontra violações da dignidade humana perpetradas pelo próprio Estado. Essa exigência de respeito concretiza-se, sobretudo, nos momentos em que o individuo se confronta directamente com os poderes públicos ou se encontra sob custódia do Estado. O poder estatal deve servir propósitos públicos e nunca ser instrumento de humilhação ou desumanização dos cidadãos.
Num Estado Constitucional como os nossos, são precisamente os casos do dia a dia que exigem maior atenção: a mãe que vê o seu filho morrer por falta de assistência médico-medicamentosa; o cidadão injustiçado pelo poder do estado na reivindicação de um seu bem por meio da expropriação ou apropriação; o suspeito torturado pelos órgãos policiais, antes de qualquer decisão judicial; a inacção dos órgãos do Estado à fome e à sede dos refugiados de guerra; a realização da justiça por mãos próprias por meio da tortura, castigos corporais e outras punições arcaicas, situações que, infelizmente, são muitas vezes excluídas do controlo de constitucionalidade das jurisdições constitucionais dos Estados. Alias como dizia Martin Luther King “a injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”.
A expressão dignidade humana, presente logo no início do texto constitucional, representa simultaneamente uma retrospectiva e uma orientação para o futuro: remete para os horrores vividos durante os mais de 30 anos de guerra civil e, ao mesmo tempo, contém a promessa de que o Estado não causará, nem permitirá, novas violações da dignidade da pessoa humana. É sob esta perspectiva que se tem consolidado a vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional de Angola, expressa através dos seus acórdãos:
𝗔𝗰ó𝗿𝗱ã𝗼 𝟭𝟮𝟮/𝟮𝟬𝟭𝟬
Disponível em https://www.tribunalconstitucional.ao/media/lljjlswo/122.pdf
Num processo-crime mediático no país à data, os arguidos foram obrigados a usar a vestimenta dos serviços prisionais e captada a imagem dos réus durante a audiência de julgamento, com transmissão em directo em rede 5 nacional de televisão. Em sede de recurso, o Tribunal Constitucional, deu provimento ao pedido dos Recorrentes e considerou que a imposição da vestimenta e o modo como os arguidos foram tratados redundaram numa manifesta e censurável ofensa à sua dignidade e à sua integridade pessoal.
𝗔𝗰ó𝗿𝗱ã𝗼 𝟯𝟳𝟵/𝟮𝟬𝟭𝟱
Disponível em https://www.tribunalconstitucional.ao/media/ulpnrqyw/379.pdf
Neste Acórdão, o Tribunal Constitucional apreciou, em recurso, uma decisão do Tribunal Supremo que negou provimento a um pedido de habeas corpus e, apesar de ter negado provimento ao recurso, por entender que a decisão recorrida não violava direitos fundamentais dos recorrentes, fixou, no entanto, que devia a prisão dos Recorrentes cessar tão logo entrasse em vigor a Lei das Medidas Cautelares em Processo penal (que se encontrava em vacatio legis), também por força do princípio da aplicação retroactiva da lei mais favorável.
𝗔𝗰ó𝗿𝗱ã𝗼 𝟴𝟴𝟳/𝟮𝟬𝟮𝟰
Disponível em https://www.tribunalconstitucional.ao/media/4vwhixix/ac%C3%B3rd%C3%A3o-887.pdf
Estando em causa o direito à liberdade individual, entendido como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, o Tribunal Constitucional pugnou pela restituição à liberdade do Recorrente, por considerar ter havido violação dos princípios da legalidade penal, da subsidiariedade e da liberdade, ao ser aplicado ao arguido a medida cautelar de prisão preventiva, sem que estivessem, no caso, preenchidos os pressupostos da adequação, da necessidade e proporcionalidade da medida face ao crime em causa.
𝗔𝗰ó𝗿𝗱ã𝗼 𝟴𝟴𝟰/𝟮𝟬𝟮𝟯
Disponível em https://www.tribunalconstitucional.ao/media/oiko1dgg/ac%C3%B3rd%C3%A3o-884.pdf
No acórdão em referência, o Tribunal Constitucional considerou, que “a proibição de penas múltiplas do artigo 65.º está ligada à dignidade da pessoa humana e ao princípio do Estado de direito. No seu âmbito de aplicação, a protecção da dignidade da pessoa humana é especificada principalmente nos artigos 67.º, 72.º e 174.º, todos da CRA”.
Pelo registo jurisprudencial na aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, sentimo-nos confortáveis em afirmar que o Tribunal Constitucional 6 de Angola (TCA) desempenha um papel crucial na atribuição do sentido e importância ao reconhecimento da dignidade humana como direito humano fundamental.
Partindo da aceitação da verdade consagrada por NELSON MANDELA de que “A educação é a arma mais poderosa que se pode usar para mudar o mundo”, não tem sido apenas no plano judicativo que o Tribunal Constitucional tem desempenhado um papel central na definição, protecção e promoção da dignidade humana como um direito fundamental, garantindo que esse princípio seja concretizado na prática jurídica e social.
A este propósito o Tribunal Constitucional de Angola tem se desdobrado em esforços conjuntos no sentido de promover a literacia constitucional dos cidadãos, promovendo a tradução do texto constitucional nas linguas nacionais, criando conteúdos para crianças e realizando encontros com as comunidades (Ondjango), reconhecendo deste modo, que o primeiro passo para o respeito da dignidade da pessoa é o conhecimento dos seus direitos e deveres.
Prezados Colegas,
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Cada caso ou direito tem a sua especificidade. O respeito pela dignidade da pessoa humana é uma linha orientadora fundamental para determinar o âmbito dos direitos constitucionais. Serve, portanto, como ponto de partida e limite hermenêutico para assegurar os demais direitos, uma vez que a dignidade humana, concretiza o valor da pessoa humana como o fim último a ser protegido pelo Direito.
É notável que no panorama jurídico angolano, as diferentes perspectivas sobre dignidade humana, anteriormente mencionadas, não divergem significativamente. Tal facto justifica-se, como já referido, pelo papel estruturante que este princípio desempenha enquanto base e fundamento do Estado. Não pode, por isso, o Estado deixar de proteger o ser humano, preservando a sua identidade, integridade e dignidade. A dignidade da pessoa humana é inviolável e constitui o fundamento da Constituição da República de Angola.
Devem, por isso, ser criticados os Estados cujas Constituições proclamam o princípio da dignidade humana como o mais alto valor, mas que, na prática, convivem com o empobrecimento das populações, elevadas taxas de mortalidade infantil, e com a incapacidade de garantir, através dos seus órgãos, o direito a um padrão de vida digno, nomeadamente: o acesso aos benefícios da acção social, a assistência médica e as condições matérias indispensáveis à existência física e a um nível mínimo de participação na vida social, cultural e política do Estado.
A dignidade humana precede o Estado. Ela não pode ser concebida como uma simples consequência da sua autolimitação deste. A pessoa humana não deve e nem pode ser servidora do Estado. Pelo contrário, é o Estado que deve estar ao serviço da pessoa.
Termino, inspirada no pensador IMMANUEL KANT, quando disse que “tudo tem o seu preço, mas o ser humano tem dignidade”. Ora, eu diria que o ser humano é ele mesmo o próprio valor, o que mais importa! Pelo que falar de ser humano e de dignidade deveria significar a mesma coisa.
Muito Obrigada pela vossa mui digna audiência, atenção e paciência